Rabo de Cometa
Em um vídeo de celular, uma voz feminina faz um tour na parte externa de uma casa de festas. Ela apresenta aos seus seguidores virtuais uma garagem repleta de carros, uma grande piscina e, ao fundo, um campo de futebol. Enquanto se prepara para seguir com a gravação, um clarão desponta no horizonte, no que ela se pergunta: “Nossa, olha! O que é isso?”. Imediatamente, a câmera é direcionada para cima, mira o céu e capta um objeto reluzente que rasga a noite. Ainda que o corpo estranho se apresente apenas como bola de luz, a cauda flamejante que o segue irrompe o céu, demarcando a rota percorrida pelo astro. Estrela, foguete, meteoro: a voz de cada um no vídeo dá a sua aposta do que está sendo captado ali. Assim como esta mulher que teve a rapidez de captar o evento, tantos outros vídeos viralizaram entre os moradores de Goiânia, preenchendo as redes sociais com registros que, mimetizando o cometa, tiveram curta passagem pela barra de rolagem.
Interessado na investigação de uma “coletividade anônima” que determinados registros são capazes de oferecer, a produção de Benedito Ferreira está intimamente atrelada ao gosto pelo assombramento de uma certa banalidade, no sentido menos pejorativo possível. Refletindo sobre a recorrência da ação de filmar os céus, o artista coletou diversos vídeos que circulam na internet nos quais pessoas discorrem acerca daquilo que veem acima de suas cabeças. Entre o deleite estético proporcionado pela beleza da formação das nuvens sobre o límpido azul atmosférico, o temor de possíveis prenúncios e mensagens divinas comunicadas pelos arco-íris que enlaçam os céus de Goiânia ou, ainda, o espanto ocasionado por objetos não identificados que piscam e se movimentam entre as nuvens (fazendo crer, para aqueles que acreditam em OVNIs, na devolução dos seus olhares por seres não conhecidos), uma questão é recorrente: o desejo de captura do mais coletivo elemento que abriga os humanos – o céu. Preservando os registros, tanto no que concerne às durações como também aos formatos de suas captações, Benedito os reúne em categorias, na qual cada vídeo parece convocar o seguinte ao diálogo. O encadeamento formal e narrativo da série de inserções que integram Genealogia para o céu apresenta a maneira em que cada indivíduo se apropria de um fenômeno público e o torna privado mediante diferentes leituras de um mesmo evento e escolhas formais de apresentação. Reflete sobre a lógica de sua subsequente reentrada no espaço comum via inserção nas redes sociais.
Ampliando a discussão acerca da ideia de genealogia, a instalação A família sem árvore tece seu comentário sobre a questão a partir da figura da árvore sem ramificações: quatro sarrafos de madeira são dispostos na parede, desenhando linhas de força que dialogam, por sua vez, com uma quinta linha – que, constituída de rasgos de fotografias presas por pregos ao centro, constrói um tracejado perpendicular, em diagonal. Paralelamente, dois estojos de madeira revelam uma porção de sobras, que escoa por suas frestas e desliza até o chão. Coletados durante longo período de andanças do artista em antiquários, o farelo e os rasgos são resultados da trituração de fotografias. O caráter anônimo das imagens, que se permitem apreender apenas em seus ínfimos detalhes – ou, simplesmente, reservam ao espectador a dúvida, como no caso da poeira –, encerra a leitura de histórias que se perderam nas trocas de gerações familiares. Uma recusa à memória ou um ato de reparação? O gesto de eliminação de imagens, comum à prática de Ferreira, de elaboração, montagem e subsequente aniquilamento de filmes feitos para serem usufruídos em uma única configuração expográfica, lança um olhar cuidadoso para a língua balbuciante de histórias descartadas, à mercê do manuseio daqueles que a possam adquirir.
Ao chão, a obra Ferramentas revela frascos de perfume em formato de bonecos antropomórficos, dispostos como se disputassem uma corrida. Pairam entre a leveza do corpo vazio e o pesar das pedras amarradas em seus corpos de plástico e porcelana. Subtraídos da condição de frasco pela colagem do corpo às suas bases, seu conteúdo é anteriormente derramado em copos e preenchido recorrentemente com água. São feitos para serem evaporados e preencher a sala expositiva. Atrás, a instalação Arquivo Morto compila um conjunto expressivo de papéis de carta, de comum uso durante as décadas de 1980 e 1990. O aspecto decorativo preenche as folhas com ilustrações de desenhos animados e personagens famosos da época. Lidando com o fetiche que envolve a ideia de uma coleção, Benedito propõe a coleta desses papéis de carta e o seu subsequente preenchimento por frases e memes que apreende no dia a dia. Máximas como “Acredite em seu sonho”, encontradas no espaço urbano pela inserção malcriada de outrem, e citações meméticas como “Óleo não se mistura com água e nem eu com comédia”, que inundam as redes sociais, dividem folhas com outros rabiscos e rasuras de quem se permite o percurso do desenho. Estes dois trabalhos descritos subvertem, em seus respectivos gestos, tanto o resguardo do objeto de coleção a ser preservado como o caráter funcional ao qual deveriam servir. Em seu “processo de desarquivamento”, o artista interpela um interlocutor contemporâneo, coletivo, apresentando o passado como algo a ser possuído, transformado. Os materiais funcionam com combustível para um diálogo permanente com o presente.
Em Instrução para clarividência, Benedito é capturado deitado sobre o parapeito do porto marítimo de Nantes-Saint-Nazaire, localizado em Nantes, na França. Seu corpo se dispõe perpendicularmente aos anéis em neon do artista Daniel Buren. Dialogando com o comércio triangular escravocrata que ligava a África, as Américas e a Europa, a instalação pública discute o trânsito forçado ocorrido no mesmo porto que, durante a Guerra Fria, tornou-se ponto de armazenagem e amadurecimento de bananas importadas da Guiné, Guadalupe, Camarões e Costa do Marfim, e, hoje, serve como zona turística. Contudo, a maneira como o artista se coloca a repousar neste parapeito faz recordar imagens de viajantes que tomam a estrada à espera de uma carona, ou, ainda, que descansam para continuar sua andança. Propondo um diálogo sobre a ideia de viagem e trajeto, o trabalho se relaciona com a faixa exposta na área externa da Vila Cultural Cora Coralina, que carrega a citação Não deu pra segurar a barra então eu voltei. Extraída da música “Rumo à Goiânia”, da dupla sertaneja Leandro & Leonardo, a frase se conjuga com o vídeo na medida em que a leitura cruzada entre ambos tece um comentário acerca dos fluxos migratórios em busca de melhores condições de vida e de trabalho.
A mesma música que empresta seu verso para a faixa, entoa: “É por isso que eu ando / Em alta rotação / Feito um asteroide / Na escuridão”. Um asteroide anda na escuridão pois seu corpo é rochoso e composto por metais e minerais. Os cometas, formados por gelo e poeira, rasgam a noite produzindo uma luz no nevoeiro: carregam uma cauda de gases à medida que se aproximam do Sol. O rabo do cometa é, portanto, um rastro que não só demarca o trajeto de um objeto no espaço, mas é também o sinal de sua futura colisão e subsequente destruição. Quanto maior o rabo, mais próximo é o seu fim. Nomear esta exposição como Rabo de Cometa é evidenciar que o índice da colisão é também o último eco daquilo que ameaça a desaparição. Talvez seja o canto mais bonito de uma vida. Entre o silêncio enigmático do passado e o falatório excessivo do contemporâneo, Benedito parece escolher o encontro único com o ruído sussurrado, por vezes repetido uma única vez. Propomos, aqui, a sua escuta.
Texto do curador Lucas Albuquerque para exposição individual Rabo de Cometa de Benedito Ferreira. Setembro, 2022.