A vida passa, mas sua imagem fica

O século XXI inaugurou uma época de hiperinflação de imagens sem precedentes. Num mundo asfixiado por imagens, é cada vez mais difícil perceber o mundo. O artista holandês Erik Kessels plasmou tal ideia em sua instalação Photography in abundance (2011), no Museu de Fotografia (FOAM) de Amsterdã, onde espalhou aproximadamente meio milhão de fotografias impressas em tamanho cartão postal pela galeria – quantidade que correspondia, à época, a subida de imagens durante 24h na rede Flickr. Se dedicássemos um segundo para ver cada imagem, demoraríamos duas semanas para vê-las todas, revelando assim, uma incomensurável e sufocante imersão.

Precisamente aqui, no âmbito da reflexão sobre o lugar, o excesso e o uso das imagens no mundo contemporâneo, é que podemos situar o gesto artístico de Benedito Ferreira. Sua mais recente exposição individual em cartaz no Centro Cultural Octo Marques de Goiânia/GO, Pantera solidão, com curadoria de Divino Sobral, merece especial atenção. A exposição apresenta sete obras inéditas em que o artista volta às questões nevrálgicas que permeiam praticamente toda a sua produção: pensar a complexidade da imagem na contemporaneidade, seja como produção, circulação, pensamento e ação. Benedito Ferreira viaja mundo afora, para sempre retornar ao seu lugar de origem, Goiânia, que é pensada de maneira especial em suas produções. Em seus deslocamentos, frequenta os “mercados de pulgas”, sempre à procura de materiais que possibilitam o desenvolvimento de sua prática artística. Por tanto, no cosmopolitismo nômade de Ferreira e em seus gestos artísticos, misturam-se as figuras do artista coletor e do artista viajante.

Dos trabalhos apresentados na exposição, O Bastardo ocupa um lugar central, física e conceitualmente, e, por isso, merece especial interesse e atenção. Trata-se de 33 álbuns fotográficos datados entre 1930 e 1980, coletados em Goiânia, São Paulo, Rio de Janeiro, João Pessoa, Salvador e Curitiba. Os álbuns são, em sua essência, uma história narrativa criada por alguém que decide a sequência das imagens ao construir uma história possível. Ferreira dispõe os álbuns na parede da galeria e intervém nessas histórias, situando imagens intrusas, deslocando o que poderíamos considerar personagens que se transformam em visitantes às outras histórias fazendo que, através do gesto do artista, a realidade documental da imagem se misture com a ficção. Nesta ação, penso que Ferreira volta às origens da fotografia, quando Louis Daguerre criou, em maio de 1838-39, suas duas famosas imagens do Boulevard du Temple; uma primeira quase notarial e outra em que os personagens humanos acabam por posar, atuar, e, por tanto, ficcionalizar.

Passear pela galeria é estar diante de um ciclone de imagens e histórias que nos interpelam esteticamente por todos os lados. No vendaval, consigo identificar uma imagem que me provoca de forma especial; entre registros da torre Eiffel, o David de Michelangelo e diversas famílias posando em suas férias estivais, encontra-se uma imagem difícil de traduzir; tortuosa, corroída pelo tempo, feita escombros, se apagando, na linha tênue da existência, talvez seja a imagem chave para traduzir a névoa que cai sobre os álbuns, hoje, sem proprietários. Uma imagem fantasmagórica para falar dos fantasmas que assolam a sala. Por um lado, a memória, dilatada, dilacerada, confusa, resistente, e, por outro, a imagem, que às vezes pode tudo, e muitas vezes não pode nada.

Benedito Ferreira, ao optar por não criar novas imagens num mundo hiperinflacionário, mas coletar, reusar, ressignificar e ficcionalizá-las, se situa, pensando nos termos de Joan Fontcuberta, na era da pós-fotografia. Ao olhar para as paredes da galeria, nos deparamos com um grande cemitério ativado, individual, mas também coletivo; nos situamos frente a imagens que talvez já não são, mas se resistem a deixar de ser, já que, como reza o slogan na capa de um dos álbuns: “a vida passa, mas sua imagem fica”.

Texto do historiador e crítico de arte Paulo Duarte-Feitoza para exposição individual Pantera Solidão, de Benedito Ferreira. Publicado originalmente no Jornal UFG. Fevereiro, 2024.

 

Pantera Solidão

A exposição Pantera Solidão, de Benedito Ferreira, reúne um conjunto de 7 obras inéditas, produzidas em 2023, permitindo ver o desenvolvimento de questões que permeiam seu trabalho em diferentes suportes e que vêm amadurecendo com o decorrer do tempo: as investigações sobre os modos de produção e circulação das imagens; as metodologias de trabalho do artista viajante; o registro assíduo e compulsivo da vida; as conversas com o pop e o popular; a construção de relações com a literatura; a referência a artistas goianos; as práticas de colecionismo e de apropriação; a utilização de arquivos privados; o escrutínio das memórias individual e coletiva.

A série O Bastardo concede novo sentido a velhos álbuns de fotografias coletados em diferentes locais e datados de diferentes épocas. A ideia de bastardo consiste em inserir em um álbum uma fotografia que é de outro álbum, criando uma situação invasiva que, de certa maneira, implica colocar vestígio de uma pessoa no registro da vida de outra. Depois os álbuns são esquartejados e seus respectivos materiais são expostos sobre as paredes como órgãos exumados. Apartados de seus donos e de suas histórias originais, os álbuns dissecados e suas imagens fotográficas tornam-se ruínas, provas do abandono e testemunhas do esquecimento decorrente da morte. Mas, não aceitando o obituário das imagens, Benedito Ferreira age como um criador de ficções explorando o potencial poético das ruínas, estabelecendo um fio de conexão com outras subjetividades e possibilitando a invenção de narrativas sugeridas pelas relações entre fotografias existentes em cada álbum e a fotografia não legítima, invasora. As imagens dos diversos álbuns são ora requintadas e quase profissionais, ora defeituosas e amadoras: ambas as modalidades guardam distintas temporalidades e materialidades que se manifestam na luz, na cor e na textura do grão da imagem, nos tipos de papéis usados e na categoria dos álbuns — nuanças de qualidade relacionadas a distintas classes sociais e tipos raciais, uma vez que o acesso à fotografia demorou a ser popularizado no Brasil, sendo durante muito tempo um produto consumido apenas pelas elites.

Em O Bastardo, existe uma complexa resistência a aceitar a morte das imagens, que surge da sensação de tempo dilatado existente nas obras. A incompletude da superfície do presente vai em direção à profundidade do passado, que por sua vez, ainda que fragmentado e corroído, ecoa sobre o presente como permanente enigma a ser desvendado. O artista nos faz olhar para o que já passou como um voyeurista que se excita ao olhar a vida dos outros por meio de imagens quase mortas, ressignificando o ato de ver e ficcionando os registros do que se foi.

Na operação desenvolvida por Benedito Ferreira, a duração e a intensidade das memórias contidas nas imagens envelhecidas entram em conflito com a produção social da amnésia na sociedade de consumo. A duração das imagens é dilatada, mesmo que sob o preço de sua contaminação pelo kitsch, visivelmente associado aos exageros do presente e ao gosto das massas. As três obras da série Família Rodeio são produzidas pela junção do popular com o pop. Sobre três retratos de mulheres, uma moça e duas meninas, executados em fotopintura, técnica criada na França no século XIX e que teve larga utilização pelas camadas populares brasileiras durante o século XX, o artista interfere no vidro colando uma profusão de adesivos coloridos que representam animais. O curioso é que somente mulheres representam essa família, cujo sobrenome se assenta na linhagem machista e patriarcal de membros de uma sociedade ruralista. O deboche, o humor e a ironia são, assim, modos empregados pelo artista no procedimento de dilatação das imagens.

 Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera é uma videoinstalação que toma por título esteverso do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884–1914), contido no poema Versos Íntimos, um dos textos mais famosos do autor, no qual a figura da pantera aparece como símbolo da ingratidão humana. Benedito Ferreira se apropria do texto interpretado por Dom Bomfim — ator e bailarino goiano falecido em 2020 — e explora o momento em que o intérprete comete um erro, trocando a palavra ingratidão por solidão, que está no título da exposição associado à pantera. Importante pensar que o erro cria um desvio para a solidão, um dos maiores males a atormentar a vida das pessoas na atualidade. Ao acomodar na obra diferentes camadas de reflexões sobre a morte e a solidão, Benedito Ferreira trata destes temas com humor, colocando a trivial pantera negra de pelúcia negro deitada sobre um colchonete assistindo ao acontecimento mostrado no monitor de TV, também posto sobre um colchonete vermelho onde o animal encara, indiferente, a interpretação dramática do lúgubre poema.

Benedito Ferreira, um dos artistas mais inquietos e instigantes de sua geração, faz do suporte videográfico um fértil campo de pesquisa. Em Alfabeto do Gelo, a fascinante paisagem quase monocromática, fria e inóspita do interior da Islândia é registrada pela janela do trem em movimento. Sobre as imagens de montanhas nevadas e vegetação ressequida, as letras vão aparecendo sucessivamente, anunciando o desejo de comunicação expresso na imagem de maneira quase silenciosa, monástica, não fosse o canto misterioso e envolvente exaltando as belezas daquela paisagem, entoado por uma voz masculina na língua originária daquele país (já considerada quase morta). Junto à imagem que pede escala panorâmica, forma-se um clima de enorme solidão mesclada com melancolia pairando sobre distâncias incalculáveis. A alta qualidade produzida pela tecnologia do presente confere à imagem um sofisticado conjunto de tonalidades de branco, gelo e cinza, estabelecendo um contraponto com as imagens em preto e branco ou de colorido esmaecido pelo envelhecimento presentes nas obras da série O Bastardo.

Apesar de muito compromissado com questões do seu lugar de origem, Benedito Ferreira é como um nômade e necessita do deslocamento para se alimentar de imagens, de histórias ou estórias. Operando na categoria do artista viajante, discute a própria produção de imagens gerada pela atividade turística, criticando a produção de lembranças que lutam contra o rápido esquecimento, mas que caem na condição de imagem souvenir, cheias de estereótipos e sujeitas à perda nos labirintos das redes sociais. A obra Arredores é composta por dois vídeos apresentados em dois aparelhos de TVs dispostos lado a lado, solicitando ao espectador o exercício de editar um jogo de perguntas e respostas. O artista filmou o movimento de distintos grupos de turistas fotografando nos arredores de diversos pontos turísticos de Paris. Em sentido diverso da figura do turista, seu foco se volta para o oposto dos monumentos, buscando capturar registros da vida a sua volta, dando delicada atenção aos fatos mais prosaicos vivenciados por aqueles que ele registra, num espaço onde encontra assuntos e caminhos poéticos para alimentar perguntas e respostas.

Texto do curador Divino Sobral para exposição individual Pantera Solidão, de Benedito Ferreira. Outubro, 2023.

 

Rabo de Cometa

Em um vídeo de celular, uma voz feminina faz um tour na parte externa de uma casa de festas. Ela apresenta aos seus seguidores virtuais uma garagem repleta de carros, uma grande piscina e, ao fundo, um campo de futebol. Enquanto se prepara para seguir com a gravação, um clarão desponta no horizonte, no que ela se pergunta: “Nossa, olha! O que é isso?”. Imediatamente, a câmera é direcionada para cima, mira o céu e capta um objeto reluzente que rasga a noite. Ainda que o corpo estranho se apresente apenas como bola de luz, a cauda flamejante que o segue irrompe o céu, demarcando a rota percorrida pelo astro. Estrela, foguete, meteoro: a voz de cada um no vídeo dá a sua aposta do que está sendo captado ali. Assim como esta mulher que teve a rapidez de captar o evento, tantos outros vídeos viralizaram entre os moradores de Goiânia, preenchendo as redes sociais com registros que, mimetizando o cometa, tiveram curta passagem pela barra de rolagem.

Interessado na investigação de uma “coletividade anônima” que determinados registros são capazes de oferecer, a produção de Benedito Ferreira está intimamente atrelada ao gosto pelo assombramento de uma certa banalidade, no sentido menos pejorativo possível. Refletindo sobre a recorrência da ação de filmar os céus, o artista coletou diversos vídeos que circulam na internet nos quais pessoas discorrem acerca daquilo que veem acima de suas cabeças. Entre o deleite estético proporcionado pela beleza da formação das nuvens sobre o límpido azul atmosférico, o temor de possíveis prenúncios e mensagens divinas comunicadas pelos arco-íris que enlaçam os céus de Goiânia ou, ainda, o espanto ocasionado por objetos não identificados que piscam e se movimentam entre as nuvens (fazendo crer, para aqueles que acreditam em OVNIs, na devolução dos seus olhares por seres não conhecidos), uma questão é recorrente: o desejo de captura do mais coletivo elemento que abriga os humanos – o céu. Preservando os registros, tanto no que concerne às durações como também aos formatos de suas captações, Benedito os reúne em categorias, na qual cada vídeo parece convocar o seguinte ao diálogo. O encadeamento formal e narrativo da série de inserções que integram Genealogia para o céu apresenta a maneira em que cada indivíduo se apropria de um fenômeno público e o torna privado mediante diferentes leituras de um mesmo evento e escolhas formais de apresentação. Reflete sobre a lógica de sua subsequente reentrada no espaço comum via inserção nas redes sociais.

Ampliando a discussão acerca da ideia de genealogia, a instalação A família sem árvore tece seu comentário sobre a questão a partir da figura da árvore sem ramificações: quatro sarrafos de madeira são dispostos na parede, desenhando linhas de força que dialogam, por sua vez, com uma quinta linha – que, constituída de rasgos de fotografias presas por pregos ao centro, constrói um tracejado perpendicular, em diagonal. Paralelamente, dois estojos de madeira revelam uma porção de sobras, que escoa por suas frestas e desliza até o chão. Coletados durante longo período de andanças do artista em antiquários, o farelo e os rasgos são resultados da trituração de fotografias. O caráter anônimo das imagens, que se permitem apreender apenas em seus ínfimos detalhes – ou, simplesmente, reservam ao espectador a dúvida, como no caso da poeira –, encerra a leitura de histórias que se perderam nas trocas de gerações familiares. Uma recusa à memória ou um ato de reparação? O gesto de eliminação de imagens, comum à prática de Ferreira, de elaboração, montagem e subsequente aniquilamento de filmes feitos para serem usufruídos em uma única configuração expográfica, lança um olhar cuidadoso para a língua balbuciante de histórias descartadas, à mercê do manuseio daqueles que a possam adquirir.

Ao chão, a obra Ferramentas revela frascos de perfume em formato de bonecos antropomórficos, dispostos como se disputassem uma corrida. Pairam entre a leveza do corpo vazio e o pesar das pedras amarradas em seus corpos de plástico e porcelana. Subtraídos da condição de frasco pela colagem do corpo às suas bases, seu conteúdo é anteriormente derramado em copos e preenchido recorrentemente com água. São feitos para serem evaporados e preencher a sala expositiva. Atrás, a instalação Arquivo Morto compila um conjunto expressivo de papéis de carta, de comum uso durante as décadas de 1980 e 1990. O aspecto decorativo preenche as folhas com ilustrações de desenhos animados e personagens famosos da época. Lidando com o fetiche que envolve a ideia de uma coleção, Benedito propõe a coleta desses papéis de carta e o seu subsequente preenchimento por frases e memes que apreende no dia a dia. Máximas como “Acredite em seu sonho”, encontradas no espaço urbano pela inserção malcriada de outrem, e citações meméticas como “Óleo não se mistura com água e nem eu com comédia”, que inundam as redes sociais, dividem folhas com outros rabiscos e rasuras de quem se permite o percurso do desenho. Estes dois trabalhos descritos subvertem, em seus respectivos gestos, tanto o resguardo do objeto de coleção a ser preservado como o caráter funcional ao qual deveriam servir. Em seu “processo de desarquivamento”, o artista interpela um interlocutor contemporâneo, coletivo, apresentando o passado como algo a ser possuído, transformado. Os materiais funcionam com combustível para um diálogo permanente com o presente.

Em Instrução para clarividência, Benedito é capturado deitado sobre o parapeito do porto marítimo de Nantes-Saint-Nazaire, localizado em Nantes, na França. Seu corpo se dispõe perpendicularmente aos anéis em neon do artista Daniel Buren. Dialogando com o comércio triangular escravocrata que ligava a África, as Américas e a Europa, a instalação pública discute o trânsito forçado ocorrido no mesmo porto que, durante a Guerra Fria, tornou-se ponto de armazenagem e amadurecimento de bananas importadas da Guiné, Guadalupe, Camarões e Costa do Marfim, e, hoje, serve como zona turística. Contudo, a maneira como o artista se coloca a repousar neste parapeito faz recordar imagens de viajantes que tomam a estrada à espera de uma carona, ou, ainda, que descansam para continuar sua andança. Propondo um diálogo sobre a ideia de viagem e trajeto, o trabalho se relaciona com a faixa exposta na área externa da Vila Cultural Cora Coralina, que carrega a citação Não deu pra segurar a barra então eu voltei. Extraída da música “Rumo à Goiânia”, da dupla sertaneja Leandro & Leonardo, a frase se conjuga com o vídeo na medida em que a leitura cruzada entre ambos tece um comentário acerca dos fluxos migratórios em busca de melhores condições de vida e de trabalho.

A mesma música que empresta seu verso para a faixa, entoa: “É por isso que eu ando / Em alta rotação / Feito um asteroide / Na escuridão”. Um asteroide anda na escuridão pois seu corpo é rochoso e composto por metais e minerais. Os cometas, formados por gelo e poeira, rasgam a noite produzindo uma luz no nevoeiro: carregam uma cauda de gases à medida que se aproximam do Sol. O rabo do cometa é, portanto, um rastro que não só demarca o trajeto de um objeto no espaço, mas é também o sinal de sua futura colisão e subsequente destruição. Quanto maior o rabo, mais próximo é o seu fim. Nomear esta exposição como Rabo de Cometa é evidenciar que o índice da colisão é também o último eco daquilo que ameaça a desaparição. Talvez seja o canto mais bonito de uma vida. Entre o silêncio enigmático do passado e o falatório excessivo do contemporâneo, Benedito parece escolher o encontro único com o ruído sussurrado, por vezes repetido uma única vez. Propomos, aqui, a sua escuta.

Texto do curador Lucas Albuquerque para exposição individual Rabo de Cometa, de Benedito Ferreira. Setembro, 2022.

O Vizinho Silencioso e as memórias do acidente radioativo de Goiânia

No dia 29 de setembro de 1987, Goiânia foi abalada pela notícia de um grave acidente radioativo que aconteceu depois que um equipamento radiológico — irresponsavelmente abandonado nas ruínas do Instituto Goiano de Radiologia — tinha sido levado como sucata por dois catadores de material reciclável, que o abriram e violaram o lacre de segurança da cápsula que continha césio-137, dando início a um extenso processo de contaminação. Repassada de um ferro-velho a outro, a substância radioativa foi manipulada com encantamento e ingenuidade por um número maior de pessoas que logo manifestaram graves sintomas, diagnosticados como decorrentes da contaminação causada pelo perigoso e fascinante pó branco, que no escuro ficava azul e brilhante. Em outubro, ocorreram quatro óbitos de vítimas que estavam hospitalizadas em estado gravíssimo no Rio de Janeiro. Sucederam-se dias de medo, desinformação, dor e preconceito.

A contaminação afetou direta ou indiretamente muitos outros envolvidos, desde familiares das vítimas e moradores da vizinhança dos dois ferros-velhos, até profissionais da segurança pública e da saúde, bombeiros, motoristas de caminhão e demais profissionais que estavam empenhados nas frentes de trabalho da Operação Césio, sendo imensurável o número real de contaminados, visto que, ao ser conduzido para o departamento de Vigilância Sanitária, o material foi transportado dentro de um ônibus lotado de pessoas.

Considerado o mais grave acidente com material radioativo em área urbana, foi um acontecimento sem precedentes na história e marcou a cidade de maneira definitiva. Hoje, quando o índice de radioatividade é inofensivo e os responsáveis pelo abandono do aparelho radiológico tiveram suas penas extintas, o acidente permanece na memória social como monumento inexistente nos terrenos concretados e vazios de Goiânia e nos montes do depósito de rejeitos radioativos de Abadia de Goiás. E permanece, sobretudo, como trauma, tragédia e motivo de infortúnio para as vítimas que sobreviveram, depois de passarem pela perda dos familiares e amigos, de verem extraídas partes de seus corpos, de adoecerem, serem desamparadas e de perderem suas perspectivas de vida.

Em seu trabalho O vizinho silencioso, Benedito Ferreira reúne o que sobrou e o que permanece na memória de seis radioacidentados, colhendo suas falas doloridas, pronunciadas com as vozes embargadas pelas sequelas fixadas nos corpos e nas lembranças. São narrativas evocadas em diversas situações e que, por isso, sobreviveram à força do esquecimento gerada pela passagem de mais de trinta anos. Apesar de repetidas muitas vezes, elas não perderam suas intensidades emocionais e ainda mostram que a vontade de esquecer completamente o sofrimento do passado não foi capaz de apagar as lembranças guardadas juntamente com a tristeza e a revolta, com a indignação de quem foi exposto ao risco de vida e depois abandonado.

Sem estetizar o assunto, O vizinho silencioso é um trabalho de arte atravessado pelo procedimento documental e que tem como matéria a história contada pelo vencido. É um trabalho preciso na concepção, econômico no uso de recursos técnicos e seco na formatação da linguagem documental. Apenas uma cartela de cor preta faz a abertura, a finalização e a passagem de um depoimento a outro. Sobre o mesmo plano preto, são escritas com fontes de cor branca as notas biográficas acerca das pessoas que falam. O silêncio produzido por uma pausa longa também aparece como elemento de linguagem, colaborando para a formação do sentimento de tristeza na mente do espectador e para o aprofundamento da sua interpretação.

Ao contrário do tom sensacionalista dado ao assunto pela imprensa, principalmente pelos veículos audiovisuais, O vizinho silencioso possui a tonalidade intimista da escuta por se ater somente à oralidade natural daqueles que rememoram os fatos dolorosos diante da câmera, mais de três décadas depois dos acontecimentos terem se dado. O enquadramento não muda de um quadro para o outro, e o desenho sonoro resume-se ao doce canto de pássaros urbanos misturado com o ruído característico do trânsito da cidade, acompanhando as modulações singulares das falas dos narradores e narradoras, com suas propriedades de timbre vocal e com suas maneiras de expressão, entonação e inflexão das palavras, o ritmo do “cantado” próprio aos seus falares. Em suas vozes, seus sentimentos se tornam potentes e cristalinos e se comunicam com os nossos.

Os ambientes das falas são os quintais iluminados pela claridade solar, tendo ao fundo as próprias residências dos narradores, casas humildes com paredes de pintura gasta ou inacabada, com reboco chapiscado ou tijolos à vista, ou ainda com estreita faixa de jardim. De frente para a câmera, sentados em cadeiras como se conversassem com vizinhos ao final da tarde de domingo, homens e mulheres rememoram as histórias de medo, dor, perdas, desamparos e lutas pelas quais passaram, e falam de suas consequências para o presente, tais como a debilitação de seus corpos, a decadência de suas faculdades, as carências materiais, os preconceitos sofridos, os modos de resistência e os enfrentamentos em defesa de direitos. Os depoimentos são crus e emocionantes, pois tanto revelam a completa falta de esperança, manifestada sobretudo pelos homens, quanto a esperança que nasce do amor familiar, vivenciada pelas mulheres.

O modo como Benedito Ferreira conduz o trabalho é respeitoso com a cadência dos depoimentos, capazes de colocar um cisco nos olhos de quem os ouve. Simples e parcimonioso, se move entre o passado, o presente e o futuro, tocando o sublime ao abordar a tragédia.

Avesso a falar sobre o acidente e a mostrar seu rosto na televisão, Roberto Santos Alves mostra sua face em O vizinho silencioso e fala de seu trauma com o acidente radioativo. Ele participou da retirada do equipamento do Instituto Goiano de Radiologia e da abertura da cápsula de césio-137, o que lhe custou a amputação do antebraço direito. Seu depoimento é marcado pelo medo do preconceito, pela revolta com o abandono e pelo sentimento de injustiça; ele diz que sua vida “É ruim, é desagradável, é muito triste”, que “O futuro ficou todo jogado pra trás” e que “A esperança da gente acabou”.

Tendo trabalhado em diversas frentes da Operação Césio, desde o isolamento inicial dos focos de contaminação até a guarda dos rejeitos radioativos depositados em Abadia de Goiás, o policial militar Marques Rodrigues foi diagnosticado com um tumor cerebral em 1995, depois levou sete anos para ser reconhecido como vítima da radioatividade, e nesse período diz ter sofrido perseguição das autoridades ao tentar defender seus direitos. Em seu comovente depoimento, feito do esforço de buscar a lembrança falha, ele confessa que “É muito difícil falar” e afirma enfaticamente: “Eu não acredito em mais nada, de tanto sofrimento”.

Geraldo Guilherme era um dos funcionários do ferro-velho de Devair Alves, que comprou as sucatas do aparelho radiológico. Foi ele quem transportou dentro de um ônibus o saco contendo césio-137, acompanhando Maria Gabriela — esposa de Devair — na entrega do material radioativo à Vigilância Sanitária de Goiânia, e em decorrência disso teve um pé amputado. Ele conta: “Eu contaminei milhões de pessoas dentro de um ônibus. Isso ninguém contou, e aconteceu”; e olhando para si mesmo diz: “Eu era um homem compreto, hoje falta pedaço de mim”, “Não tenho alegria! Eu sou um homem sempre triste”.

Mãe de Leide das Neves, falecida aos seis anos de idade, Lourdes das Neves, ao relembrar toda a cadeia de acontecimentos que envolveu o processo de contaminação, adoecimento, tratamento, morte e sepultamento de sua filha, o define como doloroso, triste e desrespeitoso. Ela fala sobre os impactos emocionais sentidos no passado e no presente, sobre os sonhos em que revê a menina: “Eu queria tocar nela e não consigo”; indaga a si mesma “como eu resisto ainda?”; diz não sucumbir à tristeza porque a família e a fé lhe dão força, e ao concluir diz esperar que “o ruim já acabou”.

Irmã de Lourdes, cunhada de Devair Alves e tia da menina Leide das Neves, Luiza Odet residia no fundo do ferro-velho de Ivo Ferreira quando ocorreu sua contaminação, que atingiu o lado esquerdo do pescoço e do tórax. Foi levada para tratamento em hospital do Rio de Janeiro juntamente com outras pessoas com altos índices de exposição à radiação, e resistiu. Ela relembra várias situações envolvendo diversos agentes, destaca a fala da sobrinha ao brincar com a substância letal: “Titia, vem ver a pedrinha lumiante que papai trouxe”. Consciente do valor da memória e da história, termina dizendo que rememorar “é importante para não cair no esquecimento”.

Na época do acidente, Suely Lina mantinha relações de amizade e de vizinhança com as famílias mais atingidas pela contaminação radioativa: “viramos parente”. Montado num embate com sua própria memória vacilante, seu depoimento almeja um percurso cronológico dos acontecimentos, desde a retirada do equipamento do Instituto Goiano de Radiologia até a chegada dos profissionais da Comissão Nacional de Energia Nuclear aos focos de contaminação. Suely integrou o primeiro grupo que articulou a fundação da Associação de Vítimas do Césio-137, a qual preside atualmente. “Continuo na luta”, encerra afirmando seu compromisso com a defesa dos direitos das pessoas afetadas pelo acidente radioativo de Goiânia.

Os principais envolvidos no acidente se conheciam e mantinham relações de parentesco, amizade ou trabalho. De certa forma, se avizinhavam, no sentido de estarem próximos, embora distribuídos em bairros diferentes. A convivência era intensa, até mesmo devido ao pouco espaço e à concentração de pessoas. O contato era frequente e havia certo tipo de parentesco informal e orgânico, criado nas diferentes formas de afetividade, de interações e de trocas que mantinham entre si. Tais fatos favoreceram tanto a contaminação radioativa quanto a criação de um núcleo de apoio e solidariedade, que foi responsável por organizar o grupo e fazê-lo se representar por uma instituição como a associação das vítimas.

Percebe-se, em O vizinho silencioso, que na subjetividade dos depoentes ocorrem duas formas de embate com a memória: a primeira é a falha causada pelo esquecimento natural trazido pelo tempo e que deixa incompletudes ou confusões na elaboração das narrativas; a segunda é a manifestação da vontade de esquecer e de apagar confrontada com a constatação de sua impossibilidade, o que faz o passado retornar como um fantasma sempre reaparecendo no pensamento das vítimas do acidente.

Por fim, chama atenção nos depoimentos a atualidade de alguns dos problemas implicados no acidente radioativo com o césio-137 em Goiânia: a debilidade da fiscalização e do controle sobre a destinação dos rejeitos sólidos perigosos à saúde humana e ao meio ambiente; a falta de segurança dos coletores de material reciclável; a fragilidade dos sistemas de saúde para tratar casos dessa natureza; a ausência de responsabilidade do Estado para lidar com as vítimas. Os problemas de trinta e cinco anos atrás continuam hoje.

Texto do curador Divino Sobral para caderno digital do projeto O Vizinho Silencioso, de Benedito Ferreira. Prêmio Rumos Itaú Cultural 2019-2020. Maio, 2022.

campocontracampo: seguimos bailando

Nomes: Pégaso, Bucéfalo, Incitato, Marengo, Babieca, Palomo, Rocinante, Jolly Jumper, Hans Esperto. Respectivamente, os cavalos de Zeus, Alexandre, o Grande, Calígula, Napoleão Bonaparte, El Cid, Bolivar, Dom Quixote, personagem de HQ Lucky Luke e do professor de matemática e treinador de cavalos Wilhelm von Osten, que, entre outras proezas, ensinou Hans a fazer contas, na virada do século 20, na Alemanha. Das relações entre espécies, o encontro ser humano/cavalo é aquele que reúne, sem sombra de dúvida, conexões das mais complexas, sobretudo no que tange a um nexo especular com o que hoje conhecemos como masculinidade tóxica. Não à toa, é, igualmente, o animal mais cinematográfico: Occident, o cavalo de Muybridge; Fritz, o primeiro nos créditos; Tornado (Zorro), Argo (Xena), Seabiscuit (Seabiscuit , 2003), Silver (O cavaleiro solitário) e todos os Wonder Horses  dos “filmes de cowboy”. Cavalo sem nome foi realizado com os arquivos não utilizados em um trabalho encomendado que tinha como objetivo acompanhar cavalgada pelo interior de Goiás. Todas as vezes que um novo corte é exibido, Benedito Ferreira  deleta permanentemente os arquivos utilizados. A contrapelo da trajetória de sua espécie no cinema, o cavalo sem nome é um animal que não faz parte do mundo reconhecível, binário, hierarquizado: sem vínculos com seres humanos. É, portanto, aquele que trafega sem ser requisitado, invisível na manada, e pode desaparecer sem que sintam sua falta, seja nos arquivos, seja nas categorias historicamente associadas ao patriarcado.

Trecho de texto de Analu Cunha e Regina de Paula para publicação da mostra campocontracampo ocorrida na galeriaaymore.com de fevereiro a maio de 2021. Março, 2022.

The perception of identity as an expansive, constructive, reconstructive and deconstructive process led by the multiplicity that technical images can offer. Minorities are constantly finding performative ways to live life and manifest through all tensions and restrictions. Consequently the same queer body can be shaped by fragments that are related and crossed through the screens, devices are mainly used as an extension to communicate in this contemporary society, building and expressing constantly self-representations, backgrounds and feelings; there is an illusion that barriers can disappear by digital mediums and the internet. Nowadays, reality seems to have changed: we are distant and at the same time we are not. The selected works are a combination of performances, actions for the camera and recordings that show different perspectives of identity through this dichotomy, located in distant places but close enough to appreciate.

Bestiary (Bestiário, Benedito Ferreira) presents a body that dances. By choosing only one part of the body – the butt – the camera shows an interest in minimal events permeated by enigmas. It is an image interested in provoking dissension, either through the adhesion to the sequence shot, through the use of cards with texts or even through the exploration of red occupying the entire frame. Thus, the video invites us to inhabit the existing world in a different way, with identity as a prerogative, as a temporary stabilization and a stubborn gesture.

Texto do curador Max Provenzano para a sessão Pieces of a Relocated Body que compõe a mostra de artes visuais do Thessaloniki Queer Arts Festival. Junho, 2021.

Benedito Ferreira: dimensões enigmáticas do comum

O trabalho de Benedito Ferreira suscita um movimento pendular: entre inventariar e inventar imagens ― produzidas sobretudo em Goiânia ―, o artista apresenta possibilidades poéticas que tensionam o imaginário predominante em torno da jovem cidade planejada no Centro-Oeste brasileiro, assim como seus desdobramentos cotidianos pouco presentes nas imagens oficiais. Os procedimentos implicados na produção dessas imagens parecem perseguir uma dupla inscrição: por um lado, a abertura do artista aos encontros e ao acaso ― em cenas íntimas, corriqueiras, na agência das pessoas fotografadas em se “contraencenar” ou nas interações em aplicativos de encontros; por outro, a inscrição de sua poética numa interlocução com vozes da cidade ― como nas trocas de cartas com Pio Vargas e Samuel Costa, jovens artistas goianos que sofreram mortes precoces. Esses diálogos com a história goianiense implicam, nesse sentido, uma tomada de posição, seja pelas escolhas de recortes e enquadramentos, seja pelo contato do artista a partir de seu território. Não se trata, no entanto, de um projeto utópico ou narcísico de produzir uma Goiânia por vir ou catalogar um conjunto de sujeitos e paisagens, mas antes de mapear fragmentos e abrir fendas no muro do repertório visual. Em seu conjunto, tais imagens são convocadas a trabalhar incessantemente.

Forma-se aí, parece-me, uma fricção entre o imaginário nacional a respeito de Goiânia como projeto moderno de uma “marcha para o Oeste” (isto é, o lugar da cidade vista de fora, com seus lugares-comuns), encarnada em sua fundação na década de 1930, e uma dimensão enigmática do comum, disparada por encontros prosaicos que se desenrolam em calçadas, bares e festas populares. Idosas sentadas esperando o passar dos dias encontram, na montagem desse mapa dos acontecimentos mínimos, jovens LGBT racializadas posando em pistas de dança. Tais imagens não se pretendem, no entanto, dar a conhecer panorâmica ou enciclopedicamente a cidade, mas provocar lacunas onde a própria vida desses sujeitos é a substância poética central. A cada imagem e a cada reposicionamento na série, um pequeno mundo é reposto. O resultado visível desse processo dá a ver por indícios a performatividade implicada nas deambulações de Benedito, que se lança incessantemente no trânsito. Ao contrário das primeiras experiências etnográficas europeias que, valendo-se da ciência moderna, propunham-se neutras no contato e registro de outros grupos, aqui o artista também é convocado por essas pessoas, que tomam escolhas e conduzem a imagem, numa espécie de cumplicidade tácita em prol de um projeto comum de construção de imagens.

Se o século XIX consolida certa vocação da história em fundamentar sua construção a partir de documentos escritos ― o fetiche dos registros oficiais, isto é, dos vencedores aos quais coube escrever a disciplina em detrimento das cenas anônimas e fontes visuais  ―, verificam-se também linhas de fuga no campo da memória, presentes sobretudo a partir das primeiras décadas do século seguinte. As proposições de uma “história por imagens” suscitadas pelo Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, o Museu Imaginário de Malraux e os pensamentos em torno da montagem em Walter Benjamin são, entre inúmeras possibilidades, procedimentos exemplares que buscaram reposicionar as imagens como elementos disparadores de sentido. Tal revalidação do universo das imagens não supõe, no entanto, uma mera tradução das narrativas tradicionais em ilustrações; antes fazem tremer as próprias estruturas através das quais a memória é produzida.

Passados quase duzentos anos desde a invenção da fotografia, a consolidação dos debates acerca da verdade contida nelas e, mais tarde, as formulações críticas à cultura de massa e ao espetáculo, as imagens parecem ainda mobilizar possibilidades de propor sentidos. A despeito da banalidade evocada pela saturação visual nas mídias digitais ― frequentemente vinculadas a legendas/textos que funcionam mais ou menos como os filactérios ou as iluminuras da arte sacra ―, seria possível pensar numa consolidação da montagem como plataforma central na organização de imagens em plataformas virtuais. A vertigem dos feeds do Instagram, por exemplo, quando fixadas pelo esquadrinhamento dos conjuntos, produz espécies de atlas automáticos, ora involuntários ora calculados, e é reapropriada por estratégias poéticas que engendram arquivos num fluxo contínuo (em alguns casos, ao vivo). Se a rapidez dessas novas pranchas decerto altera o cálculo e o exercício material contidos nas experiências de Warburg, por exemplo, a contrapartida é que a montagem dessas imagens produz também acasos e se reorganiza conforme a atualização de novos elementos.

No trânsito entre suportes como cinema, fotografia e cartas, o que salta nas séries de Benedito Ferreira é o corpo desejante de ir a campo, disponível ao encontro com outros corpos e paisagens. A série Despertáculo, em especial, ao surgir de cartas endereçadas a Pio Vargas e Samuel Costa, parece evocar o formato de um caderno de notícias e lembranças dos acontecimentos miúdos de uma cidade à espera de seu centenário ― um jogo de ângulos entre estar no Setor Central ou pensá-lo desde um país distante. Em outros projetos, ao produzir recortes de outras cidades brasileiras e mesmo de outros países, a fricção disparada entre as diferentes paisagens nos permite entrever a membrana através da qual opera o olhar do artista. Há um encontro entre espaços urbanos fora-do-tempo (ou pelo menos fora dos cartões postais) que disparam uma estranha semelhança, como se formassem entre si a cartografia de uma terceira cidade (existente porém imaginária, posto que é gestada pelos cortes artísticos), mais antropomórfica que planejada, e fazem disparar sentidos e visualidades não dados a priori.

As séries fotográficas de Benedito sugerem um exercício de pôr as imagens para trabalhar, seja por meio de redes sociais, pranchas ou expografias. Tais imagens surgem do terreno rarefeito onde a linguagem descritiva já não é capaz de imaginar. Surgem também a partir de palavras, decerto, mas a partir de regimes literários específicos: palavras com rostos, palavras que se endereçam a alguém, se encarnam e tomam posição. São trabalhos para os quais já não interessa frontalmente a pretensa vocação de verdade da fotografia, seu caráter documental. São documentos de outras memórias, que não se pretendem neutras.

Texto do pesquisador Tadeu Ribeiro (UERJ) para o Programa OCUPA Virtual Galeria da FAV. Maio, 2021.

O artista como 1 amolador de despertáculos

Por volta de 2016, o artista goiano Benedito Ferreira criou a hashtag #acaradegoiânia para utilizar exclusivamente num conjunto de retratos que publicou com recorrência em sua conta pessoal no Instagram (@fbenedito). As mais de 150 publicações referentes à tag compõem um complexo e múltiplo leque de fotografias que apontam para a intrínseca diversidade de pessoas que posaram para a sua câmera, bem como para os mais heterogêneos locais que podem ser avistados nos registros ― ora mais evidentes, ora mais acanhados.

Pouco tempo depois, ele abandona o uso do #acaradegoiânia para as fotografias publicadas naquele espaço virtual. O que isso permite entrever é o entendimento de seu fôlego fotográfico como um projeto mais amplo, que inevitavelmente é amparado à discussão sobre a constituição de diversidade. Pois, se a ideia da tag fosse mesmo seguida à risca, todas as publicações seriam até hoje justapostas a ela, dado que é central em sua produção o interesse pela desconstrução de todo e qualquer reducionismo que alimente uma única imagem da capital de Goiás.

Mesmo que a hashtag seja o título endereçado a certa série finalizada de fotografias, ou, ainda, um exercício que compreenda a reorganização de uma reunião mais extensa de imagens, acredito que o jogo estabelecido entre o um e o múltiplo manobrado a partir da tag alcança amplamente a natureza do projeto artístico encarado por Ferreira. Com efeito, é possível acompanhar um raciocínio que é operacionalizado a partir da desvalida expectativa da decantação identitária, e que astutamente é forjado de maneira a apresentar a todo o tempo mais de uma nova mirada à não encapsulação da figuração requerida. Portanto, se há a obrigação de prever características mais homogêneas para dada região ou cidade brasileira, a proposta sustentada pelo artista é a de sistematicamente anular a ideia da decisão única e totalizante, e, às avessas, persistir na promoção da diferença emergente de seus encontros com a interlocução de outrem.

A produção de diversidade também apanha Genealogia para o céu (2009-2020), projeto que consistiu na coleta de vídeos do(s) céu(s) da cidade de Goiânia compartilhados publicamente no YouTube. Aqui também se joga com a palavra “genealogia”, pois se existe alguma expectativa pela “origem” ou por uma ideia de “indivíduo”, somos apresentados a um conjunto eclético de possibilidade de céus. Há o céu redondinho (que parece uma laranja), o céu da tardezinha, o céu para manter distância (o dos relâmpagos), o com ares bíblicos e até mesmo aquele de onde vêm os óvnis. E essa coleção de céus é enunciada por um grupo de pessoas que se relacionam ― cada qual à sua maneira ― com as características das condições atmosféricas e com as especificidades avistadas naquele dia. O artista mantém a narratividade sonora dos registros compartilhados, salientando as especificidades desses olhares. E então escutamos: “Cuidado, moço, tá relampeando! Olha o sol lá escapando”. E mais a frente: “Seis da manhã. Olha o céu em Goiás. Goiânia, Goiás. Vermelho, amarelo, cor de abóbora”.

Este raciocínio que dribla a unidade estéril é da mesma forma alinhavado em uma dezena de outros trabalhos. Posso citar as séries que tratam dos sujeitos dorminhocos, dos registros de pessoas no centro urbano à espera de algo, dos retratos concebidos nos mais variados tipos de festas; mas também aquelas referentes aos amores anônimos, as interessadas naquelas/es que ostentam tatuagens e coloridíssimos acessórios de moda, e outras mais.

De maneira geral, entendo esse repertório em série como se o artista estivesse sempre apresentando uma carta diferente num universo de cartas que nem cabem em suas próprias mãos. É como se ele burilasse, sem nenhuma trégua, novos e mais novos argumentos para se pôr defronte às colocações mais correntes, apresentando olhares generosos à miríade de relações estabelecidas com um sem número de interlocutoras/es.

Em vista disso, pontuo que a rotina incansável de deambulações de Ferreira nas ruas ao redor de sua morada, a publicação massiva de um conjunto de fotografias nas redes sociais, os reordenamentos constantes de seus arquivos e os diálogos frequentes travados com colegas e desconhecidos consistem nessa ação que é motivada pela produção de diversidade desde o mais cotidiano.

No desejo de construir um diversificado repertório visual da jovem Goiânia, cidade que completará seu centenário apenas em 2033, Ferreira também estabelece pactos com a produção de artistas ali naturalizados ― tanto com aqueles que outrora trabalharam a partir da fotografia quanto com os da literatura. E o trabalho Despertáculo (2020) trata justamente disso, pois essa série fotográfica é resultado de uma ficcional ― com inclinações cinematográficas ― troca de cartas entre ele e o poeta Pio Vargas e o fotógrafo Samuel Costa. A comunhão de prosa, poemas e fotografias eclode em narrativas doloridas e outras de cunho mais melodramático, em que se assinalam os abismos da desigualdade e o flagelo dos mais precarizados. Nesse ínterim, passeamos nas pinturinhas de autores desconhecidos, na garupa da motocicleta amarela, nos interiores de casas, nas praias, nos semblantes que expressam cansaço e noutros que morrem de prazer. E aspira-se também em Despertáculo travar confabulações com uma Goiânia do futuro; os cem anos à vista solicitam algum trabalho de imaginabilidade para aquilo que está por vir. Logo, faz-se necessário zelar pela qualidade da imaginação goiana.

Ainda, a série Despertáculo é livremente inspirada no título do poema homônimo de Pio Vargas [1], que fornece um estreito paralelo entre o “despertamento de si” e o “espetáculo-vida” emergentes nos versos do poeta: Estou pronto/para a guerra que encontro/quando acordo. O poeta e o artista projetam-se diante das adversidades mundanas e acionam movimentos coreográficos às ruínas de si e às das bases mais estruturais. E no decurso dos dias, reconfiguram o dentro e o fora de modo a dissolver fronteiras e a consolidar horizontes alternativos: às vezes voo para dentro/do meu sonho a céu aberto. Talvez seja por isso que essa série fotográfica solicite um alongamento de sua duração, pois é no devir ― na agrura do percurso-sempre ― que se forja um/em despertáculo. Nota-se assim que Despertáculo é ferramenta-corpo, máquina-verbo, palco-cinema, sonho-banho de rio.

Seguir o projeto artístico de Ferreira, aberto a toda sorte de encontros, atento também aos estranhamentos e belezas ali nutridos, é acessar o mais laborioso feitio de produção de diferença e imaginação. Cabe ao exercício da diferença refinar uma narrativa que se coloca repetidamente à frente da ordem e do cobiçado. Os deslizamentos propostos na exposição de fotografias desafiam o lugar da regra. E, pela contra-forma, performam o não dito. Ao mesmo tempo, é no imbricamento dos dispositivos que ativam certa qualidade imaginativa ― seja a partir dos correntes diálogos sobre o modo de se executar filmes, seja na tentativa de acionar conversas ficcionais à obra ― que garrafas são arremessadas para além de seu tempo e espaço. Para tanto, o artista desassossegado convoca seus intercessores à baila: almas vagantes, textos comidos por traças, transeuntes anônimos, amigas de longa data, cavalos oníricos, jornais velhos, canções de sucesso, boêmios, lugares abandonados, paredes avermelhadas etc. Todos com solicitações encaminhadas a unir-se em uma grande ciranda das histórias mais ordinárias, em um desejo mesmo de se inserirem numa narratividade de futuro.

Considero prudente afirmar que o incessante ânimo de Ferreira por fomentar uma memória visual do município de Goiânia ― que, segundo ele, é ainda insuficiente e ausente em sua maior complexidade dentro da narrativa oficial [2] ― é ajustado em um procedimento ambicioso de constante produção e exposição de registros fotográficos, tal como na apresentação em museus e redes sociais de suas andanças, de maneira a fazer justiça à pluralidade de histórias e sujeitos que o confrontam cotidianamente desde as experiências mais locais. Basta ver também que, em entrevista, o artista me relatou a quase irrealizável vontade que tem de fotografar todos os habitantes da capital de seu estado ― os quais ultrapassam a soma de mais de um milhão e quinhentas mil pessoas.

Por fim ― e esse é não é um desfecho, mas é exatamente um desejo que reclama por falações vindouras ―, Ferreira tem em seu velho baú, assim como o personagem Bernardo de Manoel de Barros [3], os seguintes instrumentos de labuta: 1 abridor de amanhecer e 1 esticador de horizontes. E ele manuseia tais objetos mágicos com muita eficiência e destreza. Corre à boca pequena também que os três conjuntamente estão a projetar 1 amolador de despertáculos. Não é à toa que os poetas mato-grossenses tenham chamado o amigo de Goiás à oficina de trabalho: há de se saber manusear a frágil e escaldante chama de um despertáculo. Benedito Ferreira sabe sobremaneira como fazer isso. Ah, como sabe!

[1] Poema publicado em Pio Vargas: Poesia completa (2010), organizado por Carlos Willian Leite.
[2] Todas as menções a falas de Benedito Ferreira que constam nesse texto são provenientes de um diálogo (on-line) que estabelecemos no dia 14 de abril de 2021. Agradeço imensamente a gentileza do artista por ter me chamado para tratar de sua extensa produção nas artes.
[3] Tal referência provém do poema sem título de Manoel de Barros, publicado originalmente n’O livro das ignorãças (1993).

Texto do pesquisador Alberto Luiz de Andrade Neto (UFSC) para o Programa OCUPA Virtual Galeria da FAV. Abril, 2021.

E se algum dia se chegasse a comprovar que nós – os eternos penitentes do futuro – tenhamos vivido no melhor dos tempos possíveis! Assim refletia Elías Canetti, um dos escritores mais sólidos da Europa. Os grandes pensadores que falam ao futuro determinam o pulso dos tempos que estão por vir. Ah, e os artistas, esses que vivem e criam desde o hoje mais íntimo, o hoje mais secreto que todos temos. E nos revelam, com a imanência que nos dá a imagem, sem ferir, e direto a este outro lugar que não é o racional. (…) Benedito Ferreira faz uso do caderno de artista, do diário e das cartas escritas de próprio punho, numa grafia bela e descontrolada, onde a palavra é linha, mancha, gesto e poesia. Shakespeare dizia que o humano só tem dois tópicos de conversa, amor e morte. Perdi o meu amor em Britânia nos fala de ambos: do amor e do luto. Ferreira nos incita à curiosidade de um vouyeur. Formamos o trio em uma história de amor perdida. Confirmamos dados análogos, rastros de lágrimas, feridas literárias de punhais penetrantes e aquele espelho que sempre nos reflete.

Texto da curadora Morella Jurado para catálogo do 2Salão Nacional de Arte em Pequenos Formatos de Britânia. Outubro, 2020.

Conheci o trabalho de Benedito Ferreira depois da experiência de pensar a curadoria do Trampolim, programa para jovens artistas residentes no estado de Goiás, em 2018, no MAC-GO, organizado por Gilson Plano. Sempre me impressiona a forma como Benedito se vale da fotografia: ao olhar suas imagens, há uma banalidade nos temas que joga com a nossa expectativa em torno da ideia de “espontaneidade” – estariam essas pessoas posando para a lente ou teria ele roubado suas imagens num clique? Nessa fotografia da série O lugar do trono, a amada e odiada bandeira do Brasil toma o centro da composição e um corpo estirado nos coloca em dúvida: saudação ou cansaço? Nacionalismo fascista ou desbunde etílico? A rua nos surpreende enquanto espectadores e o artista dá prosseguimento a uma pesquisa onde os limites entre “documento” e “ficção” – esses tópicos tão explorados pela teoria da imagem e da fotografia – são borrados.

Texto do curador Raphael Fonseca para fotografia que participa do projeto Fotos Pró Rio, ação solidária articulada pelo FotoRio, Villa Aymoré, Ateliê Oriente e Retrato Espaço Cultural. Agosto, 2020.

Em Nenhum o espectador é confrontado com 6’45’’ de um esquema laboratorialmente organizado para tornar coabitáveis sensações que abrem lugar ao surgimento de uma beleza trágica, que ganha textura com o andar da narrativa. Trabalhando na fresta entre o deleite e a apreensão, Benedito isola um fenômeno comum em noites quentes e úmidas, para, em caráter experimental, assistir e registrar a história de uma derrota – uma entre tantas no mundo dos seres que involuntariamente caem nas sombras da inventividade humana.

Não se trata, assim, da beleza serena, porque circundada por aflição e uma luta por sobrevivência que une o ímpeto por vencer um forte extinto inato ao esforço necessário para escapar do claustro. O resultado não poderia ser outro além da própria ruína, esta sim serena e nobre, pois resignada. A sequência em pouco tempo abre-se ao previsível: padecer ou escapar. O triunfo do primeiro intensifica a tragicidade dos segundos finais da filmagem, em que o corpo açoitado e exausto repousa sobre a luz para morrer coroando seu martírio.

Os breves momentos em que a visão é obliterada para dar lugar ao som dos movimentos agonizantes, mais do que prosseguirem com a narrativa, ressaltam o impulso por vida ainda restante no animal enclausurado. Já o formato do vídeo atua menos como emulador de uma manjada armadilha para insetos noturnos que é a fonte de luz artificial, para em verdade atrair a atenção do espectador a partilhar dessa experiência de beleza que habita na confluência entre o belo, o inquietante e o estranhamento: a eterna ciranda de Apolo e Dionísio.

Texto do pesquisador Victor Zaiden (Goethe-Universität Frankfurt) para catálogo da exposição Do Corpo Objeto ao Animal Político. Divisão de Artes Plásticas, Arte Londrina 8. Curadoria de Danillo Villa e Michelle Sommer. Junho, 2020.

Um senhor adoecido se arrasta para o vazio terreno da rua 57, o corpo envolvido por um lençol azul, azul como o Césio em noite de lua nova. Há 30 anos, a cápsula começava a ser desmontada naquele mesmo lugar. Quem sabe não testemunhamos a última dança de um homem ao som do silêncio dos mortos? O acidente do Césio-137 é ironicamente relembrado por Benedito Ferreira, que reflete com seu filme a especulação imobiliária pela qual vem passando a região mais fortemente afetada pelo incidente. A Comissão Nacional de Energia Nuclear e o estado de Goiás decidiram que um museu ajudará a recuperar e preservar essa memória, o que torna inevitável a curiosidade sobre a história que vão contar: será a dos contaminados? O terreno no qual os jovens ensaiam sua mórbida apresentação foi um dos focos desse acidente de aspecto criminoso: a casa fora demolida, o solo retirado e uma camada de concreto colocada para controlar a radiação, mas algo ficou.

Texto do curador Diego Franco para catálogo da 16ª Mostra do Filme Livre (RJ). Março, 2017.